Contos, Crônicas e Ensaios
A jovem do terminal (conto)
A jovem do terminal (conto)
Eduardo José Monteiro da Costa
Belém, segunda-feira nove e quarenta da noite. O concreto do Terminal de São Brás ainda transpirava a chuva amazônica, formando pequenas poças que refletiam os faróis dos carros e o céu nublado. Letícia, encolhida sobre um banco úmido, sentia o frio entrar pelos rasgos do casaco. Há três anos vivia ali e em outros cantos da cidade: sob marquises, em praças, entre papelões. Três anos — tempo suficiente para que seu aniversário passasse sem que ela percebesse e para que os seus vinte e cinco parecessem quarenta.
O movimento noturno do terminal era um ciclo hipnótico: buzinas de ônibus, carros passando, pessoas gritando. Mas, naquele instante, tudo parecia distante; só o coração batia alto e a sua respiração ofegante a lembravam que ainda estava viva. Os dedos apertavam uma fotografia amarfanhada — ela e o avô João pescando no rio Guamá. Ele a chamava de “minha princesa do cais”. Aquela lembrança era o último fiapo que a amarrava a algum passado onde ainda havia sobrenome e dignidade.
Dentro dela, porém, morava outra coisa: um buraco feito de arrependimento, culpa e a certeza amarga de que Deus, se existisse, a teria riscado dos planos muito antes da primeira dose de oxi.
***
O amanhecer trouxe uma chuva fina e o odor de café saindo das barracas. Letícia levantou‑se, pernas trêmulas, e iniciou a busca diária por “combustível”. Tentou lavar o rosto num bebedouro quebrado do terminal, mas a água só gotejou sobre a poeira. A cada passo, revivia cenas que haviam a ajudado a destruir suaa própria alma: discutir com a mãe e sair de casa, o namorado que a introduziu no crack, o assalto frustrado que a deixou com a cicatriz na sobrancelha.
Perto da linha de embarque, aproximou‑se de um casal que aguardava o ônibus para Mosqueiro. A mulher apertou a bolsa ao ver aquela figura esquálida. Letícia estendeu a mão e balbuciou: — “Qualquer trocado… minha filha está doente”.
Mentira automática. Recebeu olhares de repulsa. Partiu. Numa esquina, ofereceu um celular velho — achado no chão de um banheiro fétido — em troca de uma pedra. Conseguiu apenas metade de uma, fumada num canto, escondida da polícia. O torpor chegou rápido, mas também partiu na mesma velocidade, deixando‑a ainda mais vazia.
A chuva engrossou. Sem dinheiro, sem droga, sem forças. Voltou ao banco — o seu ponto final particular — com o pressentimento de que ali era a sua última parada.
***
Passos arrastados ecoaram pelo corredor coberto. Não eram passos de pressa; pareciam conhecer o destino. Um homem de meia‑idade, barba grisalha rala, aproximou‑se. Vestia calça social antiga, sapatos gastos e carregava uma sacola térmica. Sentou-se ao seu lado, respeitando uma certa distância.
— Trouxe isso pra você — disse, colocando um copo de suco de cupuaçu, um sanduíche de queijo‑coalho e um cobertor seco sobre o banco.
Letícia mirou o chão. A cabeça gritava: “não confie”. O estômago, porém, rugiu. Pegou o copo. O líquido doce lavou a garganta, e lágrimas quentes subiram aos olhos.
— Não precisa agradecer — continuou ele, voz rouca, mas cálida. — Meu nome é Elias.
Ela não respondeu.
— Já estive aí… — ele apontou o chão. — Não nesse banco. Mas nesse buraco. Dez anos preso ao crack. Diziam que eu era um zumbi no Ver‑o‑Peso. Perdi trabalho, família, quase a vida. Até que um senhor me ofereceu um prato de sopa e me falou de um Deus que me conhecia pelo nome, mesmo quando eu mal lembrava dele.
Letícia franziu o cenho.
— Deus? — a palavra saiu carregada de ceticismo. — Deus não passa por aqui.
Elias suspirou.
— Era o que eu pensava também. Mas descobri que eu é que tranquei a porta. — Retirou do bolso um cartão plastificado com letras caprichadas. — “O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito abatido.”
Ela aceitou o cartão sem entender por quê. As mãos tremiam: fome, abstinência ou uma esperança teimosa?
— Volto amanhã, se você quiser. — Ele se ergueu. — E a propósito: Letícia é nome de princesa. Ainda há um Rei que chama você de filha.
***
Durante os seis dias seguintes, o terminal tornou-se um ponto de encontro. Elias chegava sempre com algo simples — às vezes sopa, um mingau ou um cobertor seco e cheiroso. Mas, sobretudo, ouvidos atentos. Ele falava pouco, escutava muito e jamais despejava reflexões moralistas; contava‑lhe pedaços da própria jornada, intercalando histórias de recaídas e da mão invisível que o puxava de volta.
No final da tarde do domingo de Páscoa, no dia do sétimo encontro, Elias surgiu com um convite tímido:
— Vai acontecer uma cantata logo ali, na Igreja Primeiro Amor. Nada obrigado, mas eu ficaria feliz se você me acompanhasse. Dizem que os músicos dessa igreja são muito talentosos. Sem falar que há um grupo de teatro bastante criativo.
O medo travou as pernas de Letícia, mas algo — talvez o verso do velho cartão, talvez a voz do avô ecoando infância adentro — empurrou‑a para fora do banco. Caminharam sob o entardecer. À porta, um casal de diáconos da igreja a recebeu com um sorriso convidativo e um “bem‑vinda” que para ela soou como um “eu te amo”.
3 comentários
Mauro
Mensagem direta, bem circunstanciada, realista, concatenada, bem redigida e que transmite muita esperança.
Parabéns!
Gilberto Alemida
Parabéns Prof. Eduardo Costa, q
Gilberto Alemida
Parabéns Prof. Eduardo Costa, um conto das realidades vividas por milhares de pessoas em nossa cidade. Que esse conto não fique somente numa reflexão, mas nos leve a tomar ações que possam efetivamente ajudar tantas vidas. Todas as terças-feiras pela manhã, das 08 às 11h
estamos realizando atendimento a um grupo de 50 pessoas em situação de rua que vivem no entorno de São Bras. DEUS é bom o tempo todo, o tempo todo DEUS é bom!!!